De todas as conversas que tive com minha mãe, só lembro aquela que me magoou.
De todos os nossos longos e curtos diálogos no carro, no ônibus, em casa, nas praças, nas caminhadas pelo bairro.
Milhares
de cumprimentos, de abraços, de risos, de colos, de palavras de
incentivo, de piadas e recordações, e o que guardo é ela dizendo que não
presto.
Uma única vez em que não prestei entre um turbilhão de outras em que fui tratado como um príncipe.
Por que essa ingratidão memorativa? Por que essa desigualdade evocativa?
De todas as conversas que travei com meu irmão, só conservo a que nos separou.
A
gente fez castelo juntos, jogou futebol, armou casinhas, confabulou
planos, inventou segredos; centenas de dias ensolarados e noites de
insônia partilhadas e agora desaparecidas entre o hipocampo e o córtex
frontal.
O que ficou de agradável: nada.
Estou por concluir que a memória abomina a felicidade.
Não cuidamos dos positivos das lembranças, apenas colecionamos os negativos.
Não nos esforçamos para guardar os bons momentos porque temos a ideia – equivocada – de que são obrigatórios.
Há
o entendimento de que normalidade é acumular glória na vida enquanto a
dor é um acidente de percurso. Há a convicção de que a alegria é uma
condição natural enquanto a cara fechada é uma exceção (não seria o
contrário?).
Predomina
em nós a compreensão ingênua da felicidade como facilidade e da
tristeza como dificuldade. Ser feliz seria simples e ser triste
consistiria numa tremenda injustiça.
Uma noção do mundo em linha reta, de amor em abundância, provocando o desperdício constante e perigoso.
Não preservamos as delicadezas, assim como não economizamos água, já que ela verte com ligeireza pela torneira da residência.
Não poupamos as cenas comoventes, assim como não economizamos luz, já que ela depende de um clique para clarear as paredes.
Não
embrulhamos a ternura, esnobamos. Parece que é um dever recebê-la, que
nossa companhia precisa nos oferecer sempre o cotidiano mais precioso.
Devoramos um bolinho de chuva pensando no próximo. Beijamos a boca de
nossa mulher cobiçando o segundo, o terceiro e o quarto beijo.
O que é ruim é solene. O que é bom é descartável.
A
morte se torna mais inesquecível do que o nascimento. O atrito surge
mais consolidado do que o primeiro encontro. A ruptura se destaca diante
dos acordes iniciais da amizade.
Temos
amnésia da leveza, pois deduzimos que virá mais e mais no dia seguinte.
Não criamos álbuns de nossas gargalhadas, mas recortamos as cenas
rancorosas e amargas como se fossem definitivas e esclarecedoras.
Somos algozes da felicidade e, ao mesmo tempo, vítimas da infelicidade.
(fabrício carpinejar)
Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 28/08/2012
Porto Alegre (RS), Edição N° 17175
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